quarta-feira, 23 de abril de 2014

Entrevista | Lima Trindade

"Não há nada mais importante do que a expressão artística"

No próximo dia 5, o escritor Lima Trindade apresenta ao público brasiliense seu quarto título: O Retrato ou Um pouco de Henry James não faz mal a ninguém. O lançamento será às 19h no restaurante Carpe Diem da 104 Sul.
O autor falou com exclusividade ao Arquipélago da memória, nesta primeira entrevista que o blog publica. E o bate-papo não se restringiu ao novo trabalho. Lima contou sobre sua trajetória na literatura, fontes de inspiração, influências, processo criativo e projetos futuros.
Com a sensibilidade de um observador sagaz da vida, ele revela que sua escrita pode surgir nos lugares mais inusitados, como numa festa ou durante um evento esportivo. "Escrevemos quando ninguém imagina que o possamos fazer. É como se o artista fosse dois. Ele está onde o seu corpo está e também num lugar qualquer fora dele", afirma.

Conte-nos sobre sua trajetória na literatura. Tudo começou com a revista eletrônica Verbo 21, lançada em 1999, ou é anterior a isto?
Antecede um pouco. Eu poderia dizer que começou com os fanzines, publicações independentes voltadas para a cultura underground, particularmente influenciadas pelo rock, quadrinhos, skate e poesia. Isso lá pelos fins dos anos 80. Depois, juntamente com Sandro Ornellas e Andrei do Amaral, editei um jornalzinho poético chamado Huguy Rupi que, do mesmo modo que a revista portuguesa Orfeu, teve três números finalizados, mas apenas dois lançados oficialmente. Nessa época eu escrevia versos. Porém, um dia, avaliei meus arquivos e percebi que não tinha nada de particular a acrescentar ao gênero. Foi quando decidi tentar a prosa. O primeiro conto que escrevi, "A meia sola do sapato", ganhou menção honrosa numa das edições do Concurso Paulo Leminski. Isso me animou. Outras histórias foram se desenhando na minha cabeça e fui exercitando a melhor maneira de contá-las. Até que o guitarrista da banda de rock Divine, o Wilton Rossi, outro apaixonado por livros, me convidou para dividir uma coluna de literatura dentro da revista eletrônica Bras-ilha. O projeto era de um grupo de estudantes de jornalismo da UnB. Nós fazíamos entrevistas e publicávamos ensaios e resenhas de autores nacionais e estrangeiros. Todavia, os estudantes se desentenderam e deram um fim na Bras-ilha. O Wilton então me propôs a ampliação de nossa coluna para uma revista própria, tornando-se ele mesmo o webdesigner e, nós dois, os editores. Trabalhamos juntos até 2001, quando ele preferiu se dedicar mais à música e eu prossegui adiante, tornando a Verbo 21 uma das revistas brasileiras de literatura mais longevas da web. Somente em 2005 eu viria a publicar o meu primeiro livro numa coleção coordenada pelo Marcelino Freire, na [editora] Ateliê.

Com quatro livros publicados e participações em antologias importantes, você já se considera um escritor "consolidado" ou ainda "em construção"?
Talvez um misto dos dois... Um autor consolidado e em permanente construção. Para mim, não há nada mais importante do que a expressão artística. Acho que o melhor de mim reside aí. É um propósito de existência. Um propósito consolidado de mim para mim mesmo. Se meus livros alcançarão reconhecimento público ou sucesso de vendas é uma outra história, e bem diferente. A qualidade estética não estará jamais sujeita ao reconhecimento imediato ou ao sucesso de vendas. Minha obrigação é somente a de escrever da melhor maneira que eu puder. E para isso é preciso unir a precisão da palavra à coisa que ela representa. Como as coisas e o mundo mudam o tempo todo, vivemos em eterno exercício de construção e descobertas. Nesse contexto, considerar-se pronto seria um erro.

De onde vem a inspiração, Lima?
Da observação. Da reflexão a respeito do mundo em que vivemos. Da experiência de vida. Dos sentidos.

E como é seu processo de produção? Você tem uma rotina para escrever ou escreve quando dá vontade? É metódico?
Depende. Tenho e não tenho. Cada texto tem uma vontade muita própria. Às vezes, para escrever, há uma demanda de estudo, de leituras, rotinas religiosas. Noutras, o caos impera. O ato físico da escrita é apenas uma pequena parte. E escrevemos quando ninguém imagina que o possamos fazer. Por exemplo, numa festa. Ou durante um evento esportivo. É como se o artista fosse dois. Ele está onde o seu corpo está e também num lugar qualquer fora dele. Posso dizer que sim, sou metódico. Mas meus métodos variam de um conto para outro, de um romance para outro. 

Seus livros transbordam delicadeza e, em certa medida, flertam com a melancolia, como nos contos de Todo Sol mais o Espírito Santo e na novela Supermercado da Solidão. Estou certa nesta percepção?
Acredito que sim. Mas essa percepção fala muito do próprio leitor, da qualidade das leituras, pois o que importa na literatura é essa capacidade de subjetivação, de fazer com que o fruidor viva e experimente sensações ou ideias que até então ele não imaginava ser capaz de mergulhar. E tem gente que, mesmo lendo, não consegue chegar lá. Ou não consegue compreender conscientemente o impacto de um trabalho artístico. Guardam as informações no inconsciente como uma massa bruta. O conto Todo Sol mais o Espírito Santo, embora tenha um final trágico, enaltece os sentidos da beleza do que convencionamos chamar de velho, ou antigo. Há a afirmação do corpo na maturidade como potência plena. É, em certa medida, a subversão do ideal grego de beleza. E fala muito, também, de quem somos nós, brasileiros, herdeiros de uma cultura ocidental em que a África se insinua muito forte, que a cultura indígena, principalmente a das mulheres, moldou o nosso olhar. Somos um país relativamente jovem, mas velhos mundos nos habitam. Negar essa herança é cegar-se perante o espelho. Já o Supermercado da Solidão trata do oposto. É uma novela kafkaniana que investiga a impotência, a destituição do indivíduo diante de uma organização de poder virtual. As personagens são melancólicas por lutarem contra um inimigo invisível. Os níveis de violência a que estamos submetidos sem que percebamos ou compreendamos com exatidão. Daí, a fragilidade e a delicadeza.

Em seus livros, você fala sobre os sentimentos de forma bastante sincera, sem meias palavras. As histórias relatadas são baseadas em experiências vividas? Se sim, o que te impulsiona a escrever sobre você?
Muitas delas, sim. Se eu não as vivi inteiramente, passo a vivê-las no momento da escrita. Porém, não sou fiel a essas experiências. Quero dizer, as experiências sofrem interpretações e reinterpretações. Não faço autobiografia. E se a vida é incoerente, a arte não o é. A literatura sintetiza e potencializa determinadas questões da vida real. Escrevo sobre mim e sobre o outro. O comum entre nós e também o desconhecido. Parto sempre de uma pergunta que, por uma razão qualquer, me incomode. A pergunta vem de uma lacuna na minha história pessoal, um vazio no presente, uma dúvida de futuro. E nunca sei exatamente onde vou chegar.

Entre os livros que já publicou, algum te cativa de modo especial?
Não. Gosto de todos de maneiras diferentes. Sou um autor que não aprecia se repetir. Se não tiver um desafio na investigação de um tema ou uma nova maneira de trabalhar um velho assunto, acrescentando um olhar inaugural, prefiro não escrever.

Você se alterna entre o conto e o romance. Gosta dos dois gêneros de forma igual ou tem preferência por algum deles?
Minha preferência é por textos bem escritos, não importa se curtos ou longos, prosa ou poesia. Eu não antecipo a extensão ou o gênero em que trabalharei. Há histórias ou questões que demandam maior ou menor investimento. Não troco um único conto bem realizado por pilhas de romances rastaqueras. Jamais leio para "passar o tempo".

Como lida com a crítica? Que avaliação faz da crítica literária no Brasil, atualmente?
Críticas sérias são sempre bem-vindas. Sejam elas positivas ou negativas. A crítica especializada enriquece as possibilidades de leitura de um texto. É benéfica para o autor e para o leitor, que não fica preso somente à superfície da palavra. O momento da crítica no Brasil é bastante complicado. Ela sobrevive quase que exclusivamente nos bancos das universidades. E timidamente na internet. Há, sim, um predomínio de resenhas e notícias da vida literária. Fala-se do prêmio X para o autor Y. O lançamento do livro A do contista B. Destaca-se o tema de um romance Z, entrevista-se o autor G a respeito das eleições, dos realities show, do hit funk do verão. As qualidades ou peculiaridades de determinado texto são levemente resvalados. Suprime-se a análise cuidadosa, o trabalho minucioso de avaliação e desvelamento de características enriquecedoras de uma estética.

Sei que seu mestrado tratou de João Silvério Trevisan, Reinaldo Arenas e David Leavitt. Qual foi o foco do seu estudo?
Estudei as personagens gays assumidas nos contos desses três autores e a forma como elas dialogavam com a Igreja, o Estado e a Família tradicionais, instituições supressoras da liberdade individual e reguladoras do desejo e da felicidade humanas. Contudo, ao invés de utilizar ferramentas teóricas da crítica literária, articulei minha leitura com base na teoria anarquista, particularmente Proudhon. Ou seja, uma loucura!

Além desses três, quem mais te influencia? Ou, ainda, que nomes encontramos na sua biblioteca?
Uma infinidade de autores: Cervantes, Shakespeare, Mário de Sá-Carneiro, Carlos Drummond de Andrade, Gasparino da Mata, João Antonio, Marguerite Yourcenar, Jean Genet, Yukio Mishima, Cecília Meireles, Lima Barreto, Marques Rebelo, Walt Whitman, John Fante, Caio Fernando Abreu, John Steinbeck, Tolstói, João do Rio, Roberto Piva, Sidney Rocha, Mário Quintana, Jorge Amado, Rimbaud, Christopher Isherwood, Florbela Espanca, Henry James, Ana Cristina Cesar, Baudelaire, Paulo Scott, Julio Cortázar, Sandro Ornellas, Jack Kerouac, Luís Capucho, Sonia Coutinho, Carson McCullers, Cintia Moscovich, Graciliano Ramos, Kafka, Konstantino Kaváfis, Nelson Rodrigues, Truman Capote, Tom Correia, Wladimir Cazé, Allen Ginsberg e muitos, muitos outros. Tenho uma biblioteca imensa e não sei mensurar qual o grau de influência desses livros sobre mim.

Pode nos contar um pouco mais sobre o livro que está lançando, O Retrato ou Um pouco de Henry James não faz mal a ninguém?
Trata-se de um conto longo em que um casal brasileiro se vê numa situação inusitada ao visitar Portugal. É uma história de amor. Ou um livro de viagem. Ou conto de terror. Não sei bem...

Há outro projeto em andamento?
Finalizei, esses dias, a primeira versão de um romance chamado A Cidade e os Nomes. Por hora, dorme na gaveta. Se tudo der certo, pretendo publicá-lo em 2015.

Deixe sua mensagem para aqueles que sonham se tornar escritores.
Leiam sempre. Exijam de si o que esperam encontrar num autor desconhecido.

Sobre o autor: Nascido em Brasília nos agitados anos 1960, Lima Trindade atualmente reside em Salvador, Bahia. Mestre em Letras, estuda sistematicamente as obras dos autores que mais admira, destacando-se João Silvério Trevisan, Reinaldo Arenas e David Leavitt. Edita mensalmente, desde 1999, a revista eletrônica Verbo 21. É autor de Todo Sol mais o Espírito Santo (2005), Supermercado da Solidão (2005), Corações Blues e Serpentinas (2007) e O Retrato ou Um pouco de Henry James não faz mal a ninguém (2014).